Todo Tributo – como obrigação ex lege – é instituído por uma norma jurídica, denominada norma jurídica tributária em sentido estrito ou regra-matriz de incidência tributária. Estudar um tributo, assim, nada mais é do que conhecer – e construir, dentro de um processo hermenêutico – o conteúdo de sua norma jurídica instituidora.4
Assim, cabe ressaltar que os tributos aduaneiros serão analisados dentro de uma semântica de norma jurídica. Nessa teoria, as normas jurídicas são significações construídas a partir de textos de direito positivo e estruturadas na forma logica de significações construídas a partir dos textos de direito positivo e estruturadas
na forma logica de um juízo hipotético-condicional. Não constituem sinônimo de textos de lei nem de enunciado prescritivo, mas resultado de um processo de
construção de sentido realizado pelo intérprete6.
Dito isso, conforme já citado no artigo anterior, o controle aduaneiro, segundo o professor Solon Sehn, sempre esteve relacionado, em maior ou menor medida, com a tributação do Comércio Internacional. Desde os escritos cuneiformes da antiga Suméria – atual Iraque – evidenciam a existência, já́ no Século XXV a.C., de um sistema impositivo sobre as transações comerciais entre cidades-estados. No período Védico, na Índia Antiga, entre 1500 a.C. e 500 a.C., também foi identificado um regime de tributação do comércio exterior.7
O direito positivo constitui uma unidade lógica e indecomponível. Porém, o seuestudo cientifico demanda a realização de um corte metodológico, em razão das
limitações do sujeito cognescente.8
É em função desse seccionamento artificial que surgem os diversos ramos e subramos voltados ao seu estudo científico. Por isso, toda autonomia é sempre
cientifica ou dogmática.9
Logo, de acordo com o advogado e professor doutor Carlos Augusto Daniel Neto, faz-se necessário destacar a intersecção entre as matérias:
O Direito Tributário e Aduaneiro são ramos científica e didaticamente autônomos, a despeito da unidade da Ordem Jurídica. O objetivo dessa segregação não é cindir o
Direito, mas sim desenvolver ramos dogmáticos com a finalidade de estabelecer um quadro teórico para o reconhecimento de critérios de decidibilidade de conflitos, com um tratamento coerente e coeso, orientado por um conjunto de princípios e finalidades comuns.Nesse sentido, esses dois ramos se caracterizam por escopos distintos que orientam a estruturação de seus respectivos arcabouços normativos. O Direito Tributário é voltado a regular a instituição, fiscalização e arrecadação de tributos, carreando recursos ao Erário, ao passo que o Direito Aduaneiro é voltado ao controle do tráfego internacional de mercadorias, em operações de comerciais, por meio do exercício do poder de polícia sobre essas movimentações transfronteiriças. Apesar disso, esses dois ramos possuem pontos de intersecção diversos.
Há, em primeiro lugar, uma conexão administrativa contingente, que decorre de, no Brasil, as atividades aduaneiras e tributárias estarem a cabo de um mesmo órgão – a Receita Federal do Brasil –, ainda que se reconheça expressamente a separação entre esses ramos, no art. 1º da Lei nº 11.457/07.
Em segundo lugar, há uma intersecção conceitual necessária, decorrente de ambos serem especificações normativas dentro da grande área do Direito Público e, mais especificamente, do Direito Administrativo, compartilhando uma série de institutos derivados dessas grandes áreas, como a própria noção de ato administrativo.
Em terceiro lugar, há uma intersecção conceitual contingente, decorrente da opção do legislador de adotar conceitos comuns tanto para a normatização do exercício do poder de polícia aduaneiro, quanto para a descrição de hipóteses de incidência tributária, como conceitos de importação, exportação, valoração aduaneira etc. Esses termos poderiam, sem qualquer problema metodológico, ter definições próprias nas suas respectivas áreas, mas o legislador, com boa razão, optou por sentidos compartilhados, simplificando a legislação nesse mister.
Para além dessas intersecções e conexões, há um vasto campo de institutos próprios e inconfundíveis, cuja má-compreensão tem contribuído para erros na aplicação da legislação, como a distinção entre créditos de natureza tributária e não tributária, ou entre obrigações tributárias acessórias e deveres administrativos aduaneiros, e o regime aplicável a cada um deles.Outrossim, a Conselheira Titular da 3ª Seção de Julgamento do CARF e professora Mariel Orsi destaca pontos controversos que acabam sendo aplicados inadequadamente, ocasionado discussões polêmicas no âmbito dessa intersecção, ora vejamos:
Para iniciarmos, antes de qualquer delineamento técnico dos mesmos institutos contidos em diferentes áreas do direito – e aqui serão tratados os direitos aduaneiro e tributário, é necessário partir de uma premissa: direito tributário não é direito aduaneiro, porque são ramos ontologicamente distintos, ainda que oriundos de uma mesma gênese e relacionados em alguns pontos de intersecção. E, por tal razão, contemplam também regimes jurídicos diferenciados na resolução de litígios.
Uma das formas de intersecção são os tributos incidentes nas operações internacionais, como o imposto de importação, exportação, contribuições sociais, dentre outros, que carregam a aplicação do tributário como regime guia dessas exações, a despeito da reserva de peculiaridades em cada espécie – por exemplo, PIS sobre faturamento/receita e PIS Importação.
Para além da tributação, temos alguns institutos que, equivocadamente, são alocados nessa intersecção tributária-aduaneira, quando deveriam encontrar guarida exclusiva no regime jurídico aduaneiro, como a contagem de prazo decadencial para aplicação de penalidades, denúncia espontânea, responsabilidade solidária e prescrição intercorrente no processo administrativo fiscal.
As consequências dos erros, na esfera jurídica, e aqui dada ênfase ao contencioso administrativo, são prejudiciais, considerando a manutenção de autuações aduaneiras exorbitantes, embasadas por premissas tributárias. Uma das discussões mencionadas acima ganhou destaque em 2021 no CARF, pelo afastamento da sua Súmula nº 11, que dispõe sobre prescrição intercorrente: mediante distinguishing, alguns conselheiros defenderam a diferenciação entre créditos tributários e créditos não tributários para penalidades aduaneiras, e aplicaram a prescrição prevista na Lei 9.873/1999 ao processo administrativo fiscal.
Não só, outro exemplo nitidamente controverso no CARF é a aplicação da denúncia espontânea (no tributário disposta pelo famigerado artigo 138, do CTN, e no aduaneiro, disposta pelo artigo 102, do DL 37/1966), especialmente pela nebulosa (des)conexão da natureza das obrigações tributárias e obrigações aduaneiras.Em que pese a distinção entre tais obrigações, inclusive suscitadas em posicionamentos da Câmara Superior, foi editada e aprovada em 2018, a Súmula CARF nº 126, que afirma expressamente a impossibilidade de aplicar denúncia espontânea pelo descumprimento dos deveres instrumentais decorrentes da inobservância dos prazos fixados pela Secretaria da Receita Federal do Brasil para prestação de informações à administração aduaneira, mesmo após alteração do conteúdo normativo pelo artigo 40, da Lei 12.350/2010.
Nesse contexto, repara-se em apenas dois exemplos de controvérsias, sem prejuízo das demais, que temos um longo e tortuoso caminho de – pretensiosos e válidos – ajustes no
tratamento do direito aduaneiro, desde que pautados na segurança de sua aplicabilidade qualitativamente técnica, bem como no desenvolvimento de cada vez mais pesquisas científicas, com a merecida profundidade demandada, sobre as tormentosas polêmicas envoltas na área.
Por fim, não há duvidas da autonomia dogmática jurídica do direito aduaneiro. Segundo professor Solon, é necessário um corte analítico para captação da plenitude do objeto. Há, assim, uma “ordem interior” ou “consistência interna” própria que, de um lado, resulta da finalidade extrafiscal da tributação das operações do comercio exterior e da amplitude do controle aduaneiro na atualidade. De outro, da organicidade dos textos de direito positivo e da necessidade pragmática de especialização do conhecimento.10
Em suma, embora a autonomia do Direito Aduaneiro seja reconhecida, a intersecção entre as matérias envolve, em certa medida, institutos que, se aplicados e interpretados erroneamente, impactam negativamente ambas as disciplinas, ocasionando consequências jurídicas de difícil reparação.
1 Alessandra Marcon Carioni é advogada. Egressa do curso de Direito da Faculdade CESUSC. Contadora pela FAE Business School/PR. Especialista em Auditoria, Controladoria e Gestão Financeira pela FGV/PR. Pós-Graduanda em Direito Empresarial pela FGV/SP e Pós-Graduanda em Direito Tributário pela PUC/PR. Membro da Comissão de Direito Aduaneiro da OAB/SC. Membro colaborador da Comissão de Direito Aduaneiro da OAB/SP. Coautora do livro “Direito Aduaneiro Contemporâneo”, publicado pela Editora Dialética. Assessora empresas que atuam no comércio internacional para otimizar as operações de importação e exportação, no escritório
Catta-Preta & Salomão Advogados.
2 Carlos Augusto Daniel Neto é advogado. Sócio do Daniel & Diniz Advocacia Tributária. PósDoutorado em Direito Tributário em curso (UERJ). Doutor pela USP e Mestre pela PUC/SP em Direito Tributário. Especialista em Direito Tributário pelo IBET. Ex-conselheiro titular da 1ª e 3ª Seções do CARF. Professor do Mestrado Profissional do CEDES. Pesquisador do NEF/ FGV-SP e do NUPEM/IBDT.
3 Mariel Orsi é Conselheira Titular da 3ª Seção de Julgamento do Conselho Administrativo de Recursos Fiscais (CARF). Professora de Direito Tributário em cursos de graduação, extensão e pós-graduação. Responsável Executiva do Grupo de Trabalho de Direito Aduaneiro do Século XXI, do NEF/FGV, SP. Ex-Conselheira do Conselho Administrativo de Recursos Tributários do Município de Belo Horizonte/MG (CART) e do Conselho de Contribuintes do Estado de Minas Gerais (CCMG). Especialista em Direito Tributário pela PUC Campinas. Mestre em Medicina pela Unesp/SP. Doutoranda em Direito Tributário na UFMG.
4 CARVALHO, Paulo de Barros. Curso de Direito Tributário. – 30. Ed. – São Paulo: Saraiva Educação, 2019.
5 CARVALHO, Paulo de Barros. Teoria da norma tributária. 4. Ed.São Paulo: Max Limonad, 2002.
6 SEHN, Solon. Curso de Direito Aduaneiro. Grupo GEN, 2021, p. 35.
7 Ibid. p. 36
8 CARVALHO, Paulo de Barros. Curso de Direito Tributário. – 30. Ed. – São Paulo: Saraiva Educação, 2019.
9 SEHN, Solon. Curso de Direito Aduaneiro. Grupo GEN, Rio de Jnaeiro, 2021, p. 2.
10 bid., p. 3
Por Alessandra Marcon Carioni1
Considerações de:
Carlos Augusto Daniel Neto2
Mariel Orsi3