Nos dias 18 a 22 de junho, o Cesusc foi sede da 59ª Caravana da Anistia do Ministério da Justiça e recebeu diversos veículos de comunicação, entre eles, o francês Jornal Libération que publicou notícia abaixo, traduzida e disponível para leitura dos interessados.
Texto original do jornal Libération:www.liberation.fr/monde/2012/07/23/bresil-la-caravane-du-pardon_835073
Por ANNE DIATKINE, VALDIRENE GOMES
Traduzido por Maria Cláudia Badan Ribeiro
Todo o verão perambulações em torno das construções reais ou imaginárias. Hoje, uma das etapas da comissão encarregada das vítimas da ditadura de 1964 a 1984.
É uma caravana de vinte quatro juristas que percorrem o Brasil, dos lugares mais longínquos às grandes cidades, e que sem bravata, modifica profundamente a memória coletiva dos brasileiros: seu conhecimento da ditadura militar de 1964 a 1984, ou seja, vinte anos de regime autoritário.
Se os custos em termos de desaparecidos não são comparados àqueles de seus vizinhos – Chile e Argentina particularmente – a ditadura brasileira é a mais longa da América Latina e, estabelecendo-se por mais tempo do que as outras lhes serviu de matriz.
Uma ditadura de caráter humano que tranquilamente se autodissolveu organizando sua própria transição democrática? Isso é o melhor que as crianças brasileiras aprenderam. E é isso que continuam a lhes dizer, associando-se esse período, às vezes, à arrebatada expressão de “milagre econômico”, sem jamais dizer a quem ele se destinou. E é esta a opinião mais difundida na distante Europa, onde se lembra de que a França foi uma terra de asilo nos anos 70, e que para os brasileiros, “foi mais fácil”.
Certamente, mas o Brasil tem uma particularidade: não apenas o número de torturados foi o mais elevado, mas, além disso, a prática jamais foi condenada. Ela foi banalizada ao ponto de ser moeda corrente ainda hoje: “Falta de ruptura clara com o poder militar, as instituições conservaram esta “técnica” de segurança, e a periculosidade deixou o terreno político para ir se alojar na pobreza”. E o mais inquietante, segundo uma pesquisa recente, é que esta herança da ditadura é largamente aceita pela população como constata a jurista brasileira Kathia Martin-Cenut, pesquisadora do Collège de France.
Manifestações na casa de torturadores
Ela se chama caravana da anistia. Ela parou nesta quinta-feira 22 de junho, em Florianópolis, agradável ilha do Estado de Santa Catarina, não longe da Argentina. É inverno e oportunamente acredita-se estar na Bretanha no verão. A caravana é uma imagem. Na vida real, estes juristas benévolos e ultracompetentes se deslocam de preferência de avião. Isso não impede que seu caráter itinerante seja real.
Todos os meses aproximadamente, desde a criação da Caravana da Anistia em 2008 por Paulo Abrão, seu Presidente e Secretário de Estado da Justiça, processos administrativos são julgados, sempre em locais públicos, acessíveis, e abertos a todos.
Pessoas do local também assistem. São com frequência, muito jovens. Como Maria Eduarda e Bryan, ambos com 18 anos, no primeiro ano de Direito. Estão ali presentes, pois querem ver como a justiça pode ser “uma ferramenta social” além do que, em relação à ditadura, eles não aprenderam “nada de verdadeiro” na escola. “Quando o professor falava de tortura, ele se apressava. Nos contaram que o regime militar foi imposto para salvar o Brasil do perigo comunista. Mesmo a Lei de Anistia estabelecida em 1979 pela própria ditadura é mal explicada. Nós estamos contentes de estarmos aqui, porque nós queremos conhecer nossa história”.
A Caravana da Anistia não tem o poder de julgar os culpados, mas o de reconhecer as “vítimas”, e de lhes dar publicamente a palavra. Pois, a famosa lei de Anistia “ampla e generosa” de 1979, colocou no mesmo plano os opositores do regime e os torturadores, em nome da reconciliação geral. Se bem que o Brasil continua o único país da América Latina a jamais tê-los julgado.
Anistia ou amnésia? A falta de justiça irrita os mais jovens, que organizam manifestações diante da casa de antigos torturadores, fixando suas fotos e seus nomes nos muros de São Paulo. Na Europa, estas iniciativas atraem lembranças ruins. No Brasil, onde a justiça e a história estão em seus primórdios, elas suscitam a adesão dos mais velhos. Um magistrado: “Eu acho isso formidável. Nada é possível sem o apoio da sociedade civil”. Ele se chama Paulo Marcomi. É um velho senhor de óculos, um pouco arqueado. Ele veio ao seu processo, como a maioria, junto de sua família. Ele avança muito emocionado e pede que o escutem “com paciência”, pois se trata de mergulhar num passado angustiante. Ele era militante do Partido Comunista. Foi torturado, preso em nome de suas convicções e obrigado a entrar na clandestinidade, interrompendo claro, seus estudos de agronomia. Sem estado civil, ele não pôde reconhecer seus filhos. E finalmente, ganhou sua vida sob outra identidade, a de operário. Ele mostra seu contrato de trabalho.
A Comissão o escuta, lhe faz algumas perguntas e, de maneira surpreendente, Paulo Abrão lhe propõe uma compensação para que ele possa retomar seus estudos. Escutam-se alguns risos. Surpreso, Paulo Marcomini diz: “Muito bom, mas um pouco tarde. Eu sou aposentado. Eu estou defasado em matemática e química”. A Comissão mantém sua proposta. E calcula uma indenização econômica em função da profissão que ele teria se a ditadura não tivesse destruído seus projetos: 116.000 reais imediatamente e 1.115 mensais. Depois, toda a comissão se levanta para pedir solenemente ao antigo operário para receber o perdão do Estado Brasileiro pelos danos a ele causados. O homem chora como chorarão a maior parte das pessoas que passarão diante da comissão neste dia.
O Mestrado aos 72 anos
A “Anistia” da caravana é isso. Não a anistia de pessoas julgadas, mas, o pedido oficial da parte de um representante do Estado para que “perdoem” o Brasil. E todos dirão que este reconhecimento dos erros do regime ditatorial é o que mais importa. No corredor, encontra-se o novo estudante Paulo Marcomini. Ele está muito feliz. Reflexões feitas, sim, ele não tinha pensado, mas aos 72 anos – já que recuperou sua matrícula universitária – vai retomar seus estudos. “Um mestrado de história. Depois, verei. Eu tenho um ano para me decidir ».
Eis então a vez de Antônio João Manfio, seminarista católico. Seu caso é complexo já que ele tem direito a reparações por várias razões. Este homem imponente de repente se decompõe, junto com a sala. Ele desculpa-se por sua emoção: “Eu sofri muitos processos que me levaram à prisão. Eu fui insultado durante as audiências, depois torturado. Me desculpem, eu choro. Pois, é a primeira vez que uma corte de justiça me diz que eu sou uma pessoa de bem”.
Depois, chega um homem colérico, professor e excelente orador. Durante a ditadura ele ficou preso por alguns meses, período em que não pôde trabalhar. A Comissão lhe destina uma indenização pelos prejuízos sofridos, insuficiente, em sua opinião. O homem tenta ser condescendente: “Senhor Presidente, eu compreendo, o senhor é jovem demais para saber o que foi a ditadura”. Paulo Abrão, efetivamente jovem, 38 anos, um gigante, e com aspecto de estudante, lhe responde com perguntas. O professor “subversivo” deixa a sala furioso. Com sua indenização e as desculpas do Estado.
Maria Lúcia é uma empregada doméstica de 67 anos, desempregada. Seu advogado a preveniu: seu dossiê é muito pequeno. Não se deveria apresentá-lo neste estado, depois de apenas três anos de busca de provas sobre ela. Seu marido, resistente, foi massacrado misteriosamente durante a ditadura. O filho do casal tinha seis meses. Mas, apesar de seu dossiê “ruim”, a Comissão a convocou. Maria Lúcia que vive no estado do Espírito Santo viajou 29 horas de ônibus para esperar nesta sala. Desmaiou de fome. Rodeada de má sorte, ao passar mal, teve a bolsa roubada. Ela não tem um real sequer e não sabe como voltará para casa.
Aliás, saberemos que ela não tem propriamente uma casa. Seu advogado tinha razão, é uma catástrofe. No ônibus, ela pensava que só um deus podia fazer justiça aos homens. Ela escuta chorando um membro da comissão apresentar seu caso. Como cada um dos antecessores e ela por sua vez, deverá tomar a palavra. Ela expõe simplesmente que ela não sabia o que seu marido fazia, ela não perguntava, porque não queria prejudicá-lo.
Pouco a pouco ela se dá conta de que a comissão está bem mais informada do que ela. Que eles seguiram pistas até reconstituir sua vida de combatente, pois a organização da qual fazia parte era conhecida. Ela percebe que o horizonte clareia. Uma nova figura de seu marido se desenha, que até então, ela desconhecia. Paulo Abrão: “Sua presença é muito importante para nós, pois nós necessitamos de sua confiança na justiça”.
A Comissão sensibilizada com seus problemas decidiu se encarregar de sua passagem de volta. Na condição de viúva de um trabalhador, a soma à qual ela tem direito, além dos 1.200 reais mensais, é bem superior ao seu pedido inicial. Chamada, ela deixa a sala à procura de um telefone, a fim de prevenir seu filho “para que ele comece imediatamente a procurar uma casa”. Ela dirá também “este processo muda tudo dentro de mim”. Meu marido não foi morto por nada. Eu compreendo sua ligação com a sociedade.
Reunião da família
À tarde passará também três irmãs. Elas perderam o pai, comandante da marinha, preso e torturado. A filha mais velha teve que interromper sua escolaridade com 14 anos, para trabalhar: “Eu peço ao Brasil para nunca mais deixar seus filhos sem pais nem avós”. Diante do estupor da família, a comissão se dá o tempo de contar em minúcia a história do pai, sindicalista, criador de jornais, vigiado pelo Estado até 1988, ou seja, depois do fim da ditadura. Este rigor é o que mais as surpreende: “Pensávamos que nosso caso seria expedido”. È por acaso que elas escutaram falar na Caravana de Anistia, via um professor de História do Brasil. Uma das irmãs, Ludmilla: Eu estava surpresa. Toda nossa infância nós fomos perseguidas porque nós tínhamos o sobrenome de nosso pai. Teríamos direitos?”As irmãs, de mães diferentes, não foram criadas no mesmo estado. “Esse processo nos reuniu como família”.
Nesta tarde e em duas salas de audiência, cerca de trinta casos serão examinados. Na véspera, um documentário sobre um industrial que financiava os torturadores e a CIA foi projetado diante de estudantes incrédulos. Conta a favor deles, o filme não ser uma obra prima. No dia seguinte, Paulo Abrão abrirá efetivamente a audiência sobre esse tema: não se trata de “estigmatizar os militares”, mas de compreender que foram “a elite, a imprensa, os funcionários, os chefes das grandes empresas, toda a sociedade que a participou da ditadura”.
Escala rigorosa
As perseguições políticas e a possibilidade de uma reparação são previstas pela constituição brasileira de 1988. Mas, praticamente só a elite se beneficia dela. Os passos eram complexos e o cálculo das indenizações confusas. Era necessário ir à Brasília e já estar devidamente instruído. Uma socióloga: “De fato, essas reparações reproduziam as enormes ilegalidades da sociedade civil brasileira. Quanto mais poderoso se era, mais se obtinha dinheiro. Este sistema ratificava o mito de que apenas um punhado de intelectuais resistiram”.
Desde a tomada de suas funções, um dos primeiros gestos de Paulo Abrão foi recalcular as famosas “rendas da ditadura” segundo uma escala rigorosa, e não mais em função da notoriedade. Paulo Abrão: “Mede-se a força de uma ditadura pelo medo e pela cultura autoritária que ela deixa. Quando fui nomeado, eu me perguntei como fazer para reconstruir a confiança do povo em suas instituições. Eu pensei que era necessário tornar completamente transparentes estes processos, compreendidos nossos argumentos e as contestações às vezes violentas de nossas decisões. Éramos nós que devíamos nos deslocar. Não é a perda de um parente, nem o sofrimento, nem uma escolha de vida que são indenizadas -toda soma seria indecente- mas as espoliações do Estado. Cerca de vinte por cento das pessoas aceitam o perdão, mas recusam a reparação financeira. Tentamos explicar em quê esta recusa é um mal entendido.
A palavra vítima é muitas vezes contestada. Paulo Abrão: “Na falta de outra palavra, atrás deste vocábulo é lembrado que existiu sempre alguém que violou os direitos fundamentais. É por isso que a conservamos”. Vinte por cento dos dossiês são enviados por antigos militares – são seis mil que desertaram. Alguns explicam que “a impossibilidade de desobedecer” fez deles “vítimas”. A menos que se acredite numa revisão próxima de sua impunidade, eles tentam a cartada final. O magistrado francês e relator da ONU Louis Joinet foi o primeiro a se bater contra a autoanistia dos ditadores, quando eles ainda estavam no poder: “Claro, o Brasil deve virar a página. Mas antes disso, é necessário lê-la”.
Aniversário do golpe abolido
Maurice Politi, figura da resistência: « A história é uma disciplina difícil num país onde o maior magistrado, Ruy Barbosa, incendiou todos os arquivos governamentais sobre a escravidão a fim de não dividir o país! Onde não se guarda nenhum traço dos massacres dos índios. Entre nós, passar o apagador sem olhar o quadro é uma tradição”. Ainda hoje o Exército brasileiro se recusa a abrir os dossiês da ditadura. Estradas e grandes ruas trazem o nome de criminosos.
Símbolo mais importante: até o ano passado, os militares festejavam o aniversário do golpe de estado militar de 31 de março de 1964. Foi a presidente Dilma Roussef que pôs fim a estas comemorações colocando-se contra uma parte do Exército.
Esta Caravana que está em sua 59º etapa e já examinou cerca de 70.000 dossiês é única no mundo. Entretanto, ela não desperta o interesse da mídia local, porque ela não trata de celebridades. Esta discrição lhe é favorável. Ela permitiu sem barulho, a criação de uma outra comissão dita “da Verdade”, que terá por função identificar os torturadores. A presidente Dilma Rousseff nomeou seus membros em maio. Eles dispõem de dois anos para elucidar os casos ligados a violações dos direitos humanos cometidas entre 1946 e 1988!
Um primeiro militar, Carlos Alberto Brilhante Ustra, foi reconhecido como culpado de torturas por um tribunal de São Paulo, numa terça-feira de 26 de junho. Mesmo se o advogado do Coronel fizer sua apelação evocando a lei de Anistia de 1979, ele inevitavelmente não terá ganho de causa, pois a Corte Interamericana de Direitos do Homem assinalou recentemente que esta lei de anistia não pode constituir um obstáculo no caso de crimes contra a humanidade.