A (re)construção da censura na atualidade

  • Data de publicação
    31 de março de 2022
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Por João Pedro de Moraes Lima Vieira[1]

 

Introdução

 

O Brasil rompeu com o totalitarismo em 1985, após superados 21 anos de regime militar, que reproduziu uma série de danos à sociedade brasileira. Em 1988 consolidamos um regime democrático de direito, com a outorga da Constituição Cidadã, produto da organização de diversos segmentos sociais que clamaram e lutaram por liberdade, anistia, inclusão social e por uma sociedade justa e igualitária – pautas estas amparadas pelo princípio universal da dignidade da pessoa humana e dos direitos humanos fundamentais (MELLO, e LIMA, 2021, p. 1).

Em 2013, com o início das manifestações ocorridas por todo o Brasil, em que se expressava o descontentamento dos setores populares quanto ao aumento das tarifas nos meios públicos de transporte, revelavam-se outras faces reivindicativas que abandonavam os “20 centavos” e apresentam o profundo descontentamento por parte dos manifestantes com a educação, saúde, demandas sociais e os gastos públicos destinados à realização da Copa do Mundo no país.

As movimentações nesse sentido sempre foram extremamente organizadas e executadas sem a participação de partidos políticos. A maioria dos movimentos eram caracterizados por serem apartidários, ou mesmo antipartidários, de modo que sua organização era estipulada através da internet – onde se articulavam e sistematizavam suas reinvindicações.

A reeleição da presidenta Dilma Rousseff, em 2014, permitiu que esses movimentos pudessem ter mais projeção, pois sua posse fora realizada em um Brasil já polarizado, entrando em um período de recessão profunda, agravada pelo índice de 12 milhões de brasileiros desempregados. As notícias sobre os escândalos de corrupção, as pedaladas fiscais, o superfaturamento e evasão de dívidas envolvendo a compra de uma refinaria na Petrobrás afundaram o governo Dilma em impopularidade.

Em oposição a ele, emergia a presença virtual e paradigmática do Movimento Brasil Livre (MBL), que atuou massivamente ao longo do futuro processo de impeachment que, segundo Rafaela Ramos Da Silva Neves, ganhou grande clamor público, graças ao argumento e à imagem suprapartidários adotados pelos membros do grupo (NEVES, 2020, p. 145).

Eis a profunda crise econômica que o Brasil atravessou em 2014. Abrem-se precedentes para a retórica do ódio no Brasil.

Entre as 14 e 23 horas do dia 17 de abril de 2016, ocorria a sessão de votação da admissibilidade do processo de impeachment da Presidenta Dilma, culminada de uma denúncia oferecida pelos advogados Hélio Bicudo e Janaína Paschoal que, com grande recorrência de referências à religião e às suas famílias nas manifestações orais individuais dos Deputados Federais que justificaram seus votos na sessão da Câmara, não só autorizaram o afastamento  e posterior impeachment da ex-presidenta como foram determinantes para que o debate político se orientasse por uma agenda liberal/conservadora.

 

Discurso de ódio e Retrotopia

 

O emergente crescimento da extrema direita vinculou outras figuras ao cenário político nacional. Em outubro de 2018, uma vez anunciado o resultado oficial dos pleitos eleitorais ocorridos em dois turnos, confirmava-se uma tendência já antevista pelos analistas políticos: o Brasil atravessava uma forte onda conservadora.

De acordo com Guilherme Antunes Ramos (p. 05, 2020), ao dissertar sobre o conservadorismo, Heywood explica ser uma ideologia política que aprecia a tradição e o desejo de conservar, que desconfia de quaisquer mudanças operacionalizadas no campo dos valores morais (apud. HEYWOOD. p.102, 2017).

Zygmunt Bauman (2017) em seu ensaio póstumo “Retrotopia” explica que nas sociedades líquidas, dentro de sua própria liquidez, os seres humanos buscam voltar e consumir ideais do seu passado, retomando valores aparentemente sólidos para um mundo líquido e incerto.

Segundo o autor, o século XX se iniciou partindo de uma utopia futurista e acabou com nostalgia, onde o mundo presente nada mais é do que um entre inúmeros indefinidos mundos possíveis e fragmentados, passados, presentes e futuros (p. 12, 2017). A conclusão que se dá é que, por conta deste fenômeno imposto ao século XXI, seria a retrotopia uma série de possibilidades enxergadas no passado abandonado, mas que não morreu. Assim, fiel às utopias, a retrotopia tem sua esperança conciliada na segurança e liberdade de outrora. E explica:

Tendo perdido (ou dado as costas a) todas as visões de uma sociedade alternativa do futuro (melhor), e associando o futuro, se não a algo “pior que o presente”, à ideia de “mais do mesmo” (…) não admitira que, ao procurar ideias genuinamente significativas, nós nos voltemos de forma nostálgica para as grandes ideias sepultadas do passado (BAUMAN, 2017, p.1786).

Desta forma, ao futuro estaria aplicada a nostalgia mercantilizada, desprendida de ética e relevância, uma vez relegada aos mercados consumidores. Bauman representa a tendência de nossa sociedade contemporânea em buscar na nostalgia as soluções autoritárias, diretamente implicadas na regulação social, sob a visão de que o indivíduo seria, por natureza, um predador do próprio indivíduo: egoísta, focado em suas necessidades e satisfações. E, se assim sendo, a violência, o ódio e a dor seriam utilizados para conseguir aquilo que se deseja ou acredita.  Bauman ainda alerta:

Encarar essa epidemia nostálgica como “um mecanismo de defesa” (…) consiste essencialmente na promessa de construir um lar ideal que se encontra no núcleo de muitas poderosas ideologias atuais, tentando-nos renunciar ao pensamento crítico em prol do vínculo afetivo. O perigo da nostalgia é que ela tende a confundir o lar verdadeiro com o lar imaginário (2017 p. 41).

Trazendo Bauman para a atualidade, podemos observar que nos encontramos em um momento da história pautado pelo combate político e intelectual, e de constante desmoralização das instituições democráticas, da ciência e da liberdade individual. Mais do que nunca, a racionalidade é ameaçada pelo chefe do Estado brasileiro. O gosto da retrotopia é sentido pelo flerte do Presidente com os valores corrompidos do passado. A censura ressurge.

 

Censura na atualidade:  manifestações políticas no Lollapalooza

 

Segundo o periódico Carta Capital, nesta última sexta-feira o ministro Raul Araújo, do Tribunal Superior Eleitoral, acolheu o pedido do PL após críticas do Presidente da República, pedindo a proibição de manifestações políticas durante as apresentações do festival Lollapalooza (CAPITAL, 2022, p.1):

Na representação, a sigla de Jair Bolsonaro mencionava a apresentação da cantora Pabllo Vittar. Na sexta 25, antes de deixar o palco, ela pegou uma bandeira vermelha com o rosto de Lula. Em outros momentos, fez o sinal da letra L com a mão.

 A peça do PL também citava o show da britânica Marina, que protestou contra Bolsonaro e o presidente da Rússia, Vladimir Putin.

 Em sua decisão, o ministro do TSE entendeu que “a manifestação exteriorizada pelos artistas durante a participação no evento, tal qual descrita na inicial, e retratada na documentada anexada, caracteriza propaganda político-eleitoral”.

O despacho veda “a realização ou manifestação de propaganda eleitoral ostensiva e extemporânea em favor de qualquer candidato ou partido político por parte dos músicos e grupos musicais que se apresentem no festival”, sob pena de multa de 50 mil reais de descumprimento (grifo meu)

Não apenas foi solicitada a tutela de urgência para impedir, de imediato, a realização de “propagandas eleitorais irregulares”, mas pediu-se que a Justiça Eleitoral, em poder de polícia, impedisse a continuação do evento.

Inicialmente, cabe analisar que a liberdade de expressão é um direito fundamental pétreo, consagrado pelo art. 5° da Constituição brasileira. Veja-se:

Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:

(…)

IV – é livre a manifestação do pensamento, sendo vedado o anonimato;

(…)

IX – é livre a expressão da atividade intelectual, artística, científica e de comunicação, independentemente de censura ou licença;

Ainda assim, destaca-se que nossa carta magna assegura o direito à livre expressão e manifestação do pensamento, com a ressalva de que precisam ser observados os limites estabelecidos pelo texto constitucional.

Art. 220. A manifestação do pensamento, a criação, a expressão e a informação, sob qualquer forma, processo ou veículo não sofrerão qualquer restrição, observado o disposto nesta Constituição.

  • 1º Nenhuma lei conterá dispositivo que possa constituir embaraço à plena liberdade de informação jornalística em qualquer veículo de comunicação social, observado o disposto no art. 5º, IV, V, X, XIII e XIV
  • 2º É vedada toda e qualquer censura de natureza política, ideológica e artística.

Frente a este cenário, importante mencionar que a Constituição Federal de 1988 também foi chamada de Constituição Cultural, tendo em vista que agrupa normas constitucionais com valores e princípios que defendem o acesso à cultura, liberdade de criação, difusão e igualdade de fruição de bens culturais:

Art. 215. O Estado garantirá a todos o pleno exercício dos direitos culturais e acesso às fontes da cultura nacional, e apoiará e incentivará a valorização e a difusão das manifestações culturais.
§1º O Estado protegerá as manifestações das culturas populares, indígenas e afro-brasileiras, e das de outros grupos participantes do processo civilizatório nacional.

2º A lei disporá sobre a fixação de datas comemorativas de alta significação para os diferentes segmentos étnicos nacionais.

3º A lei estabelecerá o Plano Nacional de Cultura, de duração plurianual, visando ao desenvolvimento cultural do País e à integração das ações do poder público que conduzem à:

I – defesa e valorização do patrimônio cultural brasileiro;

II – produção, promoção e difusão de bens culturais;

III – formação de pessoal qualificado para a gestão da cultura em suas múltiplas dimensões;

IV – democratização do acesso aos bens de cultura;

V – valorização da diversidade étnica e regional.

Desta forma, a Constituição é clara ao explicitar que o Brasil é regido não apenas pela liberdade de expressão, sendo expressamente vedada qualquer tipo de censura, mas também por princípios fundamentais de defesa irrestrita à difusão da cultura no país.

Ocorre que, na prática, há uma factual discordância daquilo previsto legalmente e do comportamento propriamente dito dos agentes públicos. Com a tentativa de inviabilizar a livre manifestação de jovens artistas, escancara-se a realidade construída nos últimos anos: um projeto de futuro suprimido aos jovens. Não se vislumbra mais a cultura como um direito fundamental, ou a liberdade de expressão como cláusula pétrea. Estamos retrocedendo.

Enquanto o flerte com o passado perdurar os tempos atuais, continuaremos descontentes e nos manifestando, legitimados por uma parte do passado que negou com afinco o totalitarismo.

“É preciso estar atento e forte”, cantou Gal. “Apesar de você, amanhã há de ser outro dia”, cantou Chico. “Eles venceram e o sinal está fechado para nós, que somos jovens”, cantou Elis.

Essas cantigas seguem imaculadas. Já não há motivos para temer reproduzi-las. Pode-se manifestar. Pode-se cantar o que quiser. Os artistas possuem liberdade para se expressar, como bem entenderem. São protegidos pela Constituição e pela maior instituição brasileira: O Estado Democrático de Direito.

Como nos ensina Joaquín Herrera Flores, não podemos nos acomodar, temos a obrigação de buscar, incessantemente, meios e condições que nos permitam ter “acesso igualitariamente aos bens que garantam uma vida digna e para isso devemos lutar e construir espaços sociais, possibilitando que os grupos e indivíduos desenvolvam uma consciência necessária, para assim garantir a democracia (MELLO, e LIMA, 2021, p. 1).

Bibliografia:

BAUMAN, Z. Retrotopia. Rio de Janeiro: Zahar, 2017.

BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil.

CAPITAL, Carta. Lolla vai ao TSE contra tentativa de censura e diz que manifestações são salutares. 2022. Disponível em:  https://www.Cartacapital.com.br/politica/lolla-vai-ao-tse-contra-tentativa-de-censura-e-diz-que-manifestacoes-sao-salutares/. Acesso em 28/03/22.

D’ANCONA, Matthew. “Pós-verdade” / Matthew D’Ancona; [tradução Carlos Szlak]. – 1 ed. – Barueri: Faro Editorial, 2018.

FOUCAULT, M. Microfísica do poder. 20ª ed. Trad. Roberto Machado. Rio de Janeiro: Graal, 1979.

HINKELAMMERT, Franz J. La inversión de los derechos humanos: El caso de Jonh Locke. In: FLORES, Joaquín Herrera (Ed.). El vuelo de anteo: derechos humanos y crítica de la razón liberal. Editorial Desclée de Brouwer, Bilbao, 2000.

KONDER, Leandro. 1936 – Introdução ao Fascismo/Leandro Konfer. – 2ª. Ed. – São Paulo: Expressão Popular, 2009.

LIMA, João Pedro de Moraes. Assédio: Uma impertinência social a ser controlada.  2021, Florianópolis – Faculdade CESUSC.

MELLO, Prudente José Silveira. Há semelhanças entre o Golpe civil-militar de 1964 e o Golpe em 2016. In: A resistência ao golpe de 2016. PRONER, Carol, CITTADINO, Gisele, TENENBAUM, Marcio e RAMOS FILHO, Wilson (orgs.). Bauru: Canal 6, 2016.

MELLO, Prudente José Silveira e LIMA, João Pedro de Moraes. “Lawfare à brasileira: ascensão da extrema direita, destruição do patrimônio nacional e prejuízos à classe trabalhadora”. 2021.

[1] Bacharel em Direito pela Faculdade CESUSC, assessor jurídico  do gabinete da Presidência do Tribunal de Justiça de Santa Catarina, ex-Presidente do Centro Acadêmico João Luiz Duboc Pinaud e militante dos direitos humanos.