Por João Pedro de Moraes Lima Vieira1
Conforme discursa a autora Juliana Borges (2019), o Estado brasileiro formula e aplica um discurso de políticas em que a população negra deveria nutrir o sentimento de medo e, portanto, ser sujeita à repressão. A autora ainda completa que “A sociedade, imbuída de medo por esse discurso e pano de fundo ideológico, corrobora e incentiva a violência, a tortura, as prisões e o genocídio”.
As teorias que buscaram animalizar e inferiorizar a população negra durante os séculos de exploração são responsáveis pelo processo histórico de dominação branca e marginalização da população negra que, desde sempre, fora excluída dos espaços sociais coloniais, senão das cozinhas ou dos engenhos, exercendo trabalhos braçais em jornadas abusivas.
Tal relação de poder sobre os corpos negros é evidenciada ainda atualmente na própria ausência de políticas cidadãs e de direitos, na falta elementar de uma aplicação extensiva dos direitos fundamentais para a população negra, como saneamento básico, saúde integral, empregos e dignidade.
Ocorre que, com a lacuna de políticas públicas voltadas para o combate ao racismo combinada à falta de aplicação dos textos constitucionais, verifica-se que o direito brasileiro segue os moldes coloniais. Juremir Machado da Silva (2018) comenta:
“Se hoje a Justiça ainda é acusada de privilegiar os brancos ricos, ontem ela servia abertamente aos interesses dos brancos proprietários de escravos. Se atualmente a polícia é suspeita de discriminar os negros, ontem ela era o capitão do mato caçando escravos fugitivos e cumprindo o papel de garantir pela força a ordem da escravidão, a permanência em cativeiro, sob sequestro permanente de seres humanos traficados (..). Se hoje a mídia é vista como produtora da ideologia conservadora, ontem a imprensa era veículo de disseminação das teorias racistas e de ideologias de dominação. O parlamento foi, durante muito tempo, a caixa de ressonância sem estática dos interesses das elites escravistas em que liberais e conservadores distinguiam-se. (…) Fraturas, porém, surgiram no edifício do conservadorismo brasileiro do século XIX.” p. 417.
No âmbito da legalidade, Achille Mbembe (2018) afirma em sua obra “Necropolítica” que o direito foi uma maneira de fundar juridicamente a ideia de uma humanidade dividida entre a raça dos conquistadores e a de conquistados. Somente os conquistadores poderiam legitimamente se imbuir da qualidade humana. Silvio Almeida (2020) complementa que “o direito como indutor da racionalização pode ser vislumbrado de forma evidente nos regimes abertamente racistas”.
Assim, percorrendo as raízes do conservadorismo social, encontramos dados alarmantes decorrentes dos desvãos da história da escravatura no Brasil. O Mapa do Encarceramento dos Jovens no Brasil (2015) aponta que aproximadamente 60,8% da população prisional é negra. Silvio Almeida (2020) coloca: “A análise estrutural do racismo não exclui os sujeitos racializados, mas os concebe como parte integrante e ativa de um sistema que, ao mesmo tempo que torna possíveis suas ações, é por eles subjetivamente incutido a todo momento”.
Enquanto o Estado seguir fracassando em seu sistema de justiça social, marginalizando e negligenciando a população negra, continuará dando vazão para um sistema estruturado no racismo. Seguir-se-á contradito em uma sociedade que prega a universalidade de direitos, mas na qual a população negra é tratada como criminosa, vivendo para a morte, convivendo com o medo, com a expectativa ou com a efetividade da vida pobre e miserável.
É importante salientar a realidade de muitos brasileiros, que, conforme a autora Marielle Franco (2014)
“Vivem normalmente sob a mira de um fuzil, que têm a casa invadida durante a noite, que têm de pular corpos para se locomover, que convivem com o desaparecimento inexplicável de amigos ou parentes, é compatível com diversos lugares do mundo e atesta a universalização da necropolítica e do racismo de Estado.”
Sendo assim, sentimos os reflexos do passado atualmente. As teorias de darwinismo social e teorias de embranquecimento populacional comprovam que a justiça mostrou-se profundamente comprometida, durante anos de regimes colonizadores violentos, com a vigilância e punição dos “infratores” das regras vigentes. Uma mesma justiça que fechou os olhos para o descumprimento de leis que poderiam ter abreviado o sofrimento de milhões de indivíduos. Diversas esferas sociais ajudaram na consolidação do imaginário da inferioridade negra e que poderiam resultar em outra perspectiva de futuro, muito mais coeso com a fundamentalidade do direito.
Apesar da constante tentativa de se limpar de seu odioso fardo, o Brasil não irá se livrar tão cedo das condições sociais, culturais, morais e tecnológicas que viabilizaram o cativeiro. É necessário quebrar a estrutura. É necessário desconstruir. É necessário mudar.
1 Bacharel em Direito, egresso da Faculdade CESUSC. Assessor Jurídico do Gabinete da Presidência do Tribunal de Justiça de Santa Catarina. Militante dos Direitos Humanos e pesquisador da teoria social.